Domingo, 24 de Novembro de 2024 19:33
1147064020
Direitos Humanos Direitos Humanos

Moradia e espaço de uso são propostas de movimentos para a Cracolândia

Pesquisadores propõem ações que não passem pela repressão

11/05/2023 08h45
Por: Jornal Alternativa Fonte: Agência Brasil
© Rovena Rosa/Agência Brasil
© Rovena Rosa/Agência Brasil

Em oposição às políticas que o governo estadual e a prefeitura de São Paulo têm oferecido para a Cracolândia, no centro da capital paulista, ativistas e pesquisadores propõem ações que não passem pela repressão. A estruturação de um programa que promova a moradia como ação central e a criação de um espaço de uso seguro, a exemplo de outros países que lidaram comsituações semelhantes, são medidas que têm sido debatidas.

Em abril, o Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas e Álcool de São Paulo divulgou relatório avaliando a possibilidade da criação de um espaço de uso seguro para consumo de drogas na capital paulista. O documento contextualiza que a medida estaria dentro da ética da redução de danos.

Redução de danos

“A redução de danos é uma estratégia de cuidado dirigida a usuários e dependentes de drogas, baseada na melhoria da qualidade de vida, na ética do acolhimento e no respeito aos direitos humanos e abrange práticas variadas, entre as quais programas de trocas de agulhas e seringas, terapias de substituição, práticas de prevenção de overdose, programas de assistência, moradia, emprego e educação. Trata-se, portanto, de abordagem ao fenômeno das drogas que visa minimizar danos sociais e à saúde associados ao uso de substâncias psicoativas com previsão legal”, explica o texto.

O documento informa que existem 98 salas de uso seguro no mundo e 60 cidades, sendo que na Europa a política vigorahá 30 anos. A ideia é oferecer um espaço em que as pessoas que usam drogas possam ficar, evitando a “perturbação da ordem pública”, segundo o texto, e oferecendo alternativas de cuidado aos usuários, desde insumos descartáveis, como seringas, para prevenir a transmissão de infecções, até o acompanhamento de profissionais de saúde e a assistência social.

Esses espaços existem, de acordo com o relatório, de diversas formas. O documento traz o exemplo dos Países Baixos, onde há “zona de tolerância, caracterizadas por oferecerem acomodaçõessupervisionadas – locais de acolhimento e hospitalidade – apessoas em situação de rua. Esses espaços frequentemente permitem o uso de substâncias ilícitas, não se caracterizam como ambiente da área da saúde, apesar de proporcionarem ações de redução de danos junto aos usuários”.

Para São Paulo, o documento do conselho recomenda a criação de um Centro de Convivência e Cooperativa Álcool e outras Drogas, que estaria dentro das previsões legais que regulam o tema no país.

Violência naturalizada

Ainda em abril, 40 organizações da sociedade civil realizaram o seminário Cracolândia em Emergência, e o espaço de uso foi um dos temas discutidos. Para a militante do movimento A Craco Resiste, Roberta Costa, o contexto de violência extrema faz com que as pessoas que usam drogas tenham dificuldade em imaginar o que seria um lugar com mais acolhimento e sem violência.

“Esse debate sobre espaços de uso tem essa dificuldade de horizonte, de sonhar mesmo. No Brasil, a violação dos direitos humanos e a violência policial estão tão naturalizadas por essas pessoas, as que mais sofrem com isso, que elas não conseguem nem imaginar a possibilidade de um mundo em que não apanhem todo dia da polícia. E isso é muito triste”, diz Roberta a partir das contribuições dos usuários de drogas colhidas durante o seminário.

No entanto, ela pondera que antes da mega operação policial de 2017, quando a Cracolândia ficava concentrada em dois quarteirões na Rua Helvetia e na Alameda Dino Bueno, em que a repressão policial era menor e menos intensa, especialistas internacionais viam o local como algo semelhante a um espaço de uso ou zona de tolerância.

“Eu tive a oportunidade de levar vários pesquisadores internacionais àCracolândia, pessoas como Carl Hart e Liz Evans, que são especialistas em redução de danos e espaços de uso do mundo todo, e eles sempre olhavam aquele espaço – que tem muito sofrimento, muita pobreza e precisa de muitas coisas como água – como de uso impressionantemente alegre, com música”, contou a respeito das experiências que teve com o neurocientista e com responsável por criar serviços de atendimento no Canadá e nos Estados Unidos.

Para o psiquiatra Flávio Falcone, a medida reduziria o conflito instaurado na região desde a dispersão em maio do ano passado. “Um espaço de uso seguro, que resolveria o problema dos moradores e das pessoas que fazem uso e que não vão desaparecer de uma hora para outra. Nem o problema vai se resolver internando todo mundo compulsoriamente. A gente tem que usar o princípio da realidade, não o princípio do meu desejo”, defende o médico, que coordena o projeto Teto, Trampo, Tratamento.

Moradia primeiro

A iniciativa de Falcone oferece moradia para 13 pessoas que estavam em situação de rua. “Moradia em primeiro lugar. Não moradia como recompensa de um processo de abstinência, mas a moradia como um direito, antes de você fazer qualquer coisa. No meu ponto de vista, não dá para a pessoa fazer tratamento sem ter um mínimo de organização, que é a moradia. É o que a gente faz aqui nesse projeto”, afirmouem entrevista àTV Brasil.

A melhoria das condições de vida das pessoas depois que tem a segurança de um teto é muito grande, destaca o artista e educador social Raphael Escobar, que atua na Associação Birico, que também oferece moradia a um grupo menor de pessoas. “A hora que alguém vê a bomba na rua e vai para casa porqueprecisa se cuidar, é um grande avanço. Quando alguémpega o dinheirinho e compra uma comidinha para elemesmocozinhar na casadele, eu acho isso um avanço gigantesco. Quando a pessoa tem um lugar para guardar as coisas e não ser tomada pela polícia, acho que isso é uma vitória gigantesca”, exemplifica.

A partir dessa condição mais estável, segundo Escobar, é possível que a pessoa possa trabalhar e ter autonomia. “As pessoas precisam trabalhar,80% delas não conseguem emprego. E não é trabalhar em lanchonete no shopping. Essas lanchonetes não gostam de gente sem dente. Tem que entender o tipo de emprego, as peculiaridades do território. Partir de uma baixa exigência que, aos poucos, você possa irconstruindo as possibilidades de um caminhar”, diz.

Nenhum comentário
500 caracteres restantes.
Comentar
Mostrar mais comentários
* O conteúdo de cada comentário é de responsabilidade de quem realizá-lo. Nos reservamos ao direito de reprovar ou eliminar comentários em desacordo com o propósito do site ou que contenham palavras ofensivas.