A falta de transparência e investigação nas mortes causadas pela polícia no Brasil foi criticada pelo representante regional para o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas (ONU) para os Direitos Humanos, Jan Jarab. Ele classificou como tendência a “pouca transparência” em relação à letalidade policial no país.
“Embora tenhamos estatísticas sobre letalidade policial, há uma falta de investigação adequada de cada uma dessas mortes com o uso do Protocolo de Minnesota. É, portanto, impossível distinguir as mortes em legítima defesa de policiais daquelas atribuíveis ao uso desnecessário ou excessivo da força”, afirmou Jarab ao participar de audiência organizada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, vinculada à Organização dos Estados Americanos (OEA).
No encontro, realizado na tarde desta sexta-feira (12), foram ouvidas denúncias levadas por movimentos sociais sobre a atuação das forças policiais brasileiras. O representante da ONU também apresentou um resumo das análises da ONU e um balanço das ações governamentais sobre o problema. Representantes do governo federal, do Judiciário e do Ministério Público também puderam expor as medidas feitas em diferentes áreas.
O Protocolo de Minnesota, citado por Jarab, é um conjunto e diretrizes estabelecidas pela ONU para investigação de homicídios de forma a combater execuções extrajudiciais.
As operações Escudo (2023) e Verão (2024) realizadas pela Polícia Militar de São Paulo foram citadas pelo representante das Nações Unidas como exemplos de falta de transparência. Ambas ações foram lançadas na Baixada Santista, no litoral paulista. “A Operação Escudo e a Operação Verão, em fevereiro e março de 2024, resultaram em 28 e 56 mortes, respectivamente, com transparência insuficiente”, destacou Jarab.
A integrante do movimento Mães de Maio Débora Maria da Silva acusou a polícia de não só ter feito execuções, mas também de ter torturado algumas das vítimas. “O governador do estado [Tarcísio de Freitas] decidiu retomar a operação e matar os meninos com requintes de crueldade, com tortura, arrancando pele das vítimas e escapelando com canivetes”, afirmou sobre a Operação Verão.
Para Débora, o governo do estado tenta apresentar as ações como um esforço para a melhora da segurança pública na região, mas tem apenas causado sofrimento à população mais pobre. “A gente sabe que o real objetivo era o massacre da pobreza. O que está acontecendo na Baixada Santista precisa de uma resposta imediata, porque não é possível que seja feita campanha eleitoral em cima de corpos negros”, acrescentou.
No Rio de Janeiro, a integrante do Movimento Mães da Baixada, Nívia Raposo, protestou contra os impactos que as operações policiais nas comunidades causam na vida dos moradores. “Em regiões onde operações acontecem, moradores como nós, que ficamos presos no meio de operações policiais, sem poder retornar às nossas casas ou preocupados com nossos filhos, sofremos um impacto severo na saúde mental, passando por estresse pós-traumático, ansiedade, depressão e, por vezes, inclusive, pensamentos suicidas”, disse.
Rute Silva, que faz parte da rede Mães de Maio na Bahia, afirmou que seu filho, Davi Fiuza, foi morto por agentes do Estado, mas seu corpo foi ocultado, configurando um desaparecimento forçado. “Eu perdi meu filho para violência policial, eu tive meu direito de enterrar o meu filho retirado, eu fui ameaçada, perseguida durante a minha luta por justiça, eu nunca vi a justiça acontecer, e tudo isso por agentes do Estado brasileiro”, denunciou.
Jan Jarab disse que não há notificação dos casos de desaparecimentos forçados no país devido à falta de previsão legal. “Em 2021, na inspeção pelo Comitê sobre Desaparecimentos Forçados, o então governo brasileiro apresentou a tese de que não há desaparecimentos forçados no país. E não há porque o crime não foi tipificado e, portanto, não aparece nas estatísticas, embora a criminalização [desse tipo de ação] seja uma obrigação sob a Convenção contra os Desaparecimentos Forçados. No entanto, os testemunhos das famílias das vítimas de bairros marginalizados das grandes cidades nos dizem o contrário”, ressaltou.
A diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, afirmou ainda que o controle externo da atividade policial, exercido pelo Ministério Público, tem sido “pouco eficiente” para conter os abusos. “Uma análise do processamento de inquéritos criminais sobre homicídios cometidos por policiais mostrou que, em São Paulo e no Rio de Janeiro, nove em cada dez casos são arquivados. Não é possível que operações policiais letais sigam sendo a política de Estado aplicada aos jovens negros neste país”, disse.
Membro do Conselho Nacional do Ministério Público na comissão responsável pelo controle da atividade policial, André Martins enumerou uma série de medidas tomadas pelo órgão para melhorar o combate aos abusos. Entre as ações está a criação de um painel próprio de acompanhamento das mortes causadas pela polícia. Além disso, segundo ele, o conselho estabeleceu normas com o objetivo de adequar as investigações de mortes, tortura e desaparecimentos forçados às decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, “ que delineiam a necessidade de investigação direta por órgão independente e desvinculado das forças policiais envolvidas naquelas situações.”
O coordenador do Sistema Único de Segurança Pública, Márcio Júlio da Silva Matos, destacou a portaria do Ministério da Justiça que regulamentou o uso de câmeras corporais pelas forças policiais, “estabelecendo normas técnicas para utilização e para aquisição desses equipamentos pelas polícias estaduais, municipais e também pelas polícias federais”, disse.
A coordenadora-geral substituta de Segurança Pública e Direitos Humanos do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, Bruna Martins Costa, destacou as ações de apoio às famílias das vítimas da violência de estado, além de manter a memória sobre esses fatos. “Estão sendo elaborados editais referentes ao Centro de Memória para o Rio de Janeiro e Baixada Santista, no estado de São Paulo, atendendo a demanda dos movimentos de mães e vítimas de violência do estado”, disse.
A Secretaria de Segurança Publica do Rio de Janeiro afirma que “divulga, de forma transparente, os dados de morte por intervenção de agente do Estado” junto com outros crimes. As informações, segundo a nota da secretaria, são disponibilizadas mensalmente, em formato de dados abertos e painel que possibilita saber o perfil das vítimas e o meio empregado.
A Secretaria da Segurança Pública da Bahia afirmou, por nota, que "em 2023, a Polícia Civil contabilizou o menor número de mortes violentas dos últimos sete anos" no estado. "Na comparação com 2022, a redução das ocorrências de homicídio, latrocínio e lesão dolosa seguida de morte foi de 6%. Já em 2024, de janeiro a maio, a diminuição dos assassinatos foi de 11%", informou.
Também em nota, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo destaca que as mortes decorrentes de intervenção policial "são consequência direta da reação violenta dos criminosos à ação policial, que tem combatido de forma efetiva o crime organizado em todo o estado, inclusive na região da Baixada Santista". "Todas as ocorrências são rigorosamente investigadas pelas polícias Civil e Militar, com o acompanhamento das respectivas corregedorias, Ministério Público e Poder Judiciário", acrescenta o texto.
A nota do governo de São Paulo também menciona a "licitação em andamento para aquisição de 12 mil novos equipamentos que devem aumentar em 18,5% o número total de COPs [câmeras operacionais portáteis] disponíveis (10.125) e ampliar a cobertura atual de 52% do território paulista". "Somado a isso, a SSP tem investido na capacitação de suas polícias, na aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo e na implementação de políticas públicas visando à redução da letalidade policial", completa a nota.
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