Especialistas e profissionais da área de internet participaram de audiências públicas promovidas pela Comissão de Comunicação e Direito Digital ( CCDD ) nos dias 14 e 15 de maio. Os debates serviram para que 25 estudiosos apresentassem à CCDD contribuições para o PL 2.628/2022 , que busca proteger crianças e adolescentes em ambientes digitais.
O projeto é do senador Alessandro Vieira (MDB-SE) e prevê regras para redes sociais, aplicativos, sites, jogos eletrônicos, softwares, produtos e serviços virtuais — como a criação de mecanismos para verificar a idade dos usuários. Também impõe supervisão do uso da internet pelos responsáveis e obriga provedores de internet e fornecedores de produtos a criar sistemas de notificação de abuso sexual e oferecer configurações mais eficientes para a privacidade e a proteção de dados pessoais.
“O projeto pretende avançar em relação à segurança do uso da rede respeitando a autonomia e o desenvolvimento progressivo do indivíduo, de acordo com as melhores práticas e legislações internacionais e acompanhando o ritmo das inovações tecnológicas apresentadas ao público infanto-juvenil”, afirma Alessandro Vieira.
De acordo com a proposta, os desenvolvedores deverão oferecer mecanismos para impedir ativamente o uso por crianças e adolescentes de produtos e serviços que não tenham sido criados especificamente para eles ou quando não forem adequados. Os fornecedores deverão prevenir e mitigar práticas comobullying, exploração sexual e padrões de uso que possam incentivar vícios e transtornos diversos. Outra obrigação é a existência de mecanismos de controle parental para impedir a visibilidade de determinados conteúdos, limitar a comunicação direta entre adultos e menores de idade e restringir o tempo de uso.
Crianças e adolescentes são as mais prejudicadas em um mundo digital que pode viciar e adoecer pessoas de qualquer idade. Uma vida digital saudável pode ser desviada para vícios em vídeos rápidos, em likes, matchs ou views, em prêmios fáceis ou secretos. No Brasil, em média, cada pessoa já está olhando para telas de celular, televisão, tablet, relógio e computador mais da metade do seu tempo acordada. Somando todo o tempo de tela média dos brasileiros, o resultado são mais de quatro meses e meio com olhos online em um ano.
As informações são do psicólogo clínico Cristiano Nabuco de Abreu, ele é especialista em dependências tecnológicas. Dos mais de 8 bilhões de habitantes humanos do planeta Terra, pontua, mais de 5,6 bilhões têm pelo menos um telefone celular. Hoje, 84% dos 203 milhões de brasileiros têm acesso à internet. O tempo de tela médio é de cerca de 9 horas diárias no Brasil e de 6,5 horas no mundo, acrescenta o psicólogo. Para ele, o excesso de telas e a qualidade dos conteúdos digitais já estão trazendo sérias implicações sociais e de saúde.
Com dados do DataReportal , Cristiano mostrou que o Brasil já é o terceiro país que mais usa redes sociais como Facebook, TikTok, Instagram e X, atrás de Kenya e África do Sul. Os brasileiros de 16 a 64 anos gastam em média 3,5h por dia em redes sociais. O Brasil já é o terceiro país com mais acesso ao Instagram, atrás de Índia e EUA; terceiro lugar também no TikTok, atrás de EUA e Indonésia.
Cristiano participou da criação, há mais de 20 anos, do primeiro centro de tratamento de dependências tecnológicas no Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP). Ele disse que o número de dependentes tecnológicos que procuram ajuda é constante e crescente.
“O descontrole deste uso, seja ele mais ou menos com cuidado e com cautela, vai trazer, sim, efeitos bastante negativos. Essas plataformas são atualizadas a cada 24 horas, exatamente para que nós possamos de uma maneira ou de outra passar mais tempo conectados do que o inicialmente planejado, principalmente as crianças que recebem os telefones ou os pré-adolescentes e adolescentes que têm o seu próprio telefone celular”.
O psicólogo clínico sugere a criação de programas de educação para a prevenção de problemas de saúde mental em crianças e jovens pelo poder público e também dentro das grandes plataformas. Para ele, é necessário também regulamentações mais rigorosas para publicidade dirigida a crianças e adolescentes em plataformas digitais, bem como para avaliar conteúdo que promova comportamentos prejudiciais à saúde mental, como transtornos alimentares, automutilação ou suicídio.
“É preciso agir. Um projeto de lei poderia estabelecer a inclusão obrigatória de programas de educação para o uso consciente das mídias sociais nas escolas. Esses programas ensinariam os alunos sobre os potenciais riscos à saúde mental associados ao uso excessivo das redes sociais e forneceriam estratégias para promover um uso saudável”.
Globalmente, os jovens são cada vez mais quem acessa a internet, afirma a secretária de Direitos Digitais do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Lílian Manoela Monteiro Cintra de Melo. Citando dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ela diz que houve significativa expansão do acesso à internet entre 2006 e 2022 no público infanto-juvenil.
Lílian cita também relatório do Comitê Gestor da Internet no Brasil ( CGI.br ): em 2022, 92% da população brasileira de 9 a 17 anos é usuária de internet. Desses usuários, 80% usaram dispositivos para ouvir música, assistir a vídeo e enviar mensagens instantâneas e 86% têm perfil em redes sociais.
“A nossa principal preocupação está nesses aparelhos móveis, que podem ser celulares, tablets, que estão sempre à mão, ali, e estudos internacionais já mostram uma tendência a, de fato, haver um incentivo a um certo vício no uso desse tipo de aparelho”.
A secretária registra que a proteção a crianças e adolescentes no Brasil é ampla, começando na Constituição Federal e passando por ECA, CDC, LGPD. Ela acrescenta às diretrizes da ONU sobre os direitos da criança em relação ao ambiente digital. Legislações podem estabelecer certas regras e princípios para a criação de aplicativos voltados especialmente para crianças, sugeriu. Ela informou que o governo federal está criando um guia para uso de telas e um guia de práticas para que pais, mães e responsáveis onsiguam realizar o controle parental de sites e aplicativos de maneira mais simples e fácil.
Por sua vez, o professor Gustavo Silveira Borges, da Universidade do Extremo sul Catarinense (Unesc), ressalta que há a necessidade do acesso a telas, sites, redes, aplicativos ou jogos e levar em consideração que, de acordo com a idade, crianças e adolescentes têm momentos biopsicossociais distintos. Crianças de 4 ou 5 anos, pré-adolescentes de 11 e 12 anos, e jovens de 16 e 17 têm diferenças de desenvolvimento cognitivo, de sociabilidade, de independência e de autoconsciência.
Gustavo é diretor-executivo do Laboratório de Direitos Humanos e Novas Tecnologias ( LabSul ). Ele defende um ambiente online seguro, confiável e responsável para as crianças e para os adolescentes.
“Parece que as crianças vivem um período de formação da personalidade. As percepções sensoriais são muito mais aguçadas, enquanto os adolescentes têm já alguns traços de personalidades formados. Então, nós propomos uma adequação e um olhar diferenciado em relação a essas condições — que são condições biopsicossociais mesmo —, que devem ser levadas em conta”.
Na mesma linha, a chefe de Relações Institucionais do Conselho Digital do Brasil , Roberta Jacarandá, defende a diferenciação de tratamento baseado na maturidade do jovem. Ela sugere que se ofereça aos responsáveis ferramentas efetivas de controle parental que não sejam apenas falsas promessas de segurança.
“A gente acredita que os dois grupos, crianças e adolescentes, merecem proteção, mas que, dada ali a distinção de experiência, de riscos e de graus de discernimento em relação ao uso do ambiente digital, colocá-los debaixo do mesmo guarda-chuva pode ser um pouco inadequado. A gente não fala só na variação de experiência conforme a faixa etária, mas também numa necessidade de abordagem diferenciada de supervisão, controle e orientação. Crianças precisam de uma supervisão mais intensa, mais próxima. Adolescentes demandam um pouco mais de autonomia, mas precisam ser orientados em relação aos riscos e às oportunidades do ambiente digital”.
Maria Goés de Mello, do Instituto Alana , também alerta que crianças e adolescentes estão em estágio de desenvolvimento humano e biopsicossocial decisivos para o seu desenvolvimento integral. Para ela, há muitos serviços digitais que têm como objetivo principal explorar comercialmente crianças, com publicidade direcionada e de persuasão, por exemplo.
“Nas últimas décadas, o ambiente de vivência, a brincadeira, a informação das crianças e dos adolescentes mudou radicalmente. As interações, as comunicações, o consumo de entretenimento são cada vez mais intermediados por produtos e serviços digitais que, muitas vezes, usam técnicas avançadas de inteligência artificial, de análise de dados, para filtrar informações, personalizar a experiência dos seus usuários e aumentar a interação e o tempo online de todos nós, mas também de crianças e adolescentes. É inegável que as maiores empresas de tecnologia do mundo têm lucrado com a exploração invasiva de dados pessoais de crianças e adolescentes”.
Gilberto Jabur Jr., presidente da Associação de Desenvolvimento da Família, alerta para a questão da pornografia na internet. Ele disse que é crescente o consumo precoce de pornografia na internet por jovens. De acordo com o Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), 42% dos jovens de 9 a 17 anos navegam na internet e mandam e recebem mensagens e e-mails sem nenhuma fiscalização. Há grande consumo e difusão de conteúdos de sexo explícito nesta faixa etária.
“Existem diversos estudos que demonstram que a pornografia contém nos seus roteiros encenações que reforçam a violência sexual, práticas sexuais de risco, estereotipação de papéis masculinos e femininos numa relação com frequente subordinação e objetificação sexual da mulher. Demonstram também uma dominação masculina e uma priorização do prazer masculino, uma fragilização da ideia de consentimento prévio para a ocorrência da relação sexual, além de um estímulo frequente ao sexo casual e impessoal”.
Gilberto acrescenta que meninas e meninos expostos à pornografia de maneira precoce têm mais riscos de sofrerem abusos de todo tipo e de desenvolver comportamentos abusivos e violentos, doenças mentais e emocionais, como baixa autoestima.
Ele sugere que todos os canais de mídias digitais que oferecem conteúdo pornográfico sejam obrigados a adotar mecanismos confiáveis de verificação da idade e da identidade de cada usuário, além de medidas educativas e de advertência.
A Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Eletrônicos ( Abragames ) completou 20 anos de existência, informa sua gerente de Relações Institucionais, Raquel Gontijo. São mais de 10 mil empresas associadas que produzem jogos eletrônicos no Brasil. Ela concorda com a necessidade de redução dos riscos digitais aos direitos de crianças e adolescentes, com a busca de ambientes saudáveis para este público que tenham comunicação monitorada e ferramentas de controle parental, de denúncias e de restrição a compras.
Raquel diz que países como os EUA já estão adotando classificação etária mais abrangente, olhando não só para o conteúdo, mas também de mecânicas do jogo e de compras dentro dos games. São classificações tanto de mecânica quanto de conteúdo, além de ferramentas de controle parental e para a educação de consumidores. Ela sugere ampliação do debate sobre questões como as microtransações e caixas de recompensa, que são as compras dentro de um jogo, normalmente por uma pequena taxa, que podem ser feitas em dinheiro real ou moeda virtual. São mecânicas que podem confundir ou manipular consumidores, gerando pressão para gastar, especialmente sobre crianças.
Da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, Fábio Meirelles disse que o poder público também está atento para a questão do uso de redes sociais por crianças e adolescentes. Ele disse que a tendência internacional é de proibir ou restringir ao máximo o uso de redes sociais por crianças, pois estudos recentes apontam que essas redes podem impactar negativamente na saúde mental delas, causando, por exemplo, transtornos alimentares, pensamentos suicidas e automutilação. Fábio informa que o governo federal está elaborando uma estratégia nacional de educação midiática e um guia para o uso consciente de telas.
O pesquisador Rafael Leite produziu um relatório este ano sobre os estudos disponíveis sobre o impacto do uso de redes sociais na saúde mental de jovens e adolescentes. Para ele, existem tanto benefícios quanto riscos associados ao uso das redes sociais por jovens adolescentes. Em sua opinião, são necessários mais estudos que acompanhem o uso digital de crianças e adolescentes através do tempo, que ajudem a descobrir se o uso de telas ou a vida digital podem ou não favorecer doenças mentais.
“É evidente que existem efeitos negativos e positivos do uso de redes sociais na saúde mental de jovens adolescentes. Alguns estudos apontam efeitos como depressão, ansiedade, mas também existem estudos que apontam para efeitos positivos do uso de redes sociais, especialmente interações positivas por jovens e adolescentes. As definições, as metodologias aplicadas pelos estudos variam muito e é muito difícil estabelecer a causalidade entre o uso de redes sociais e os efeitos deletérios na saúde mental, porque diversos outros fatores afetam a saúde mental dos jovens e adolescentes e é difícil estabelecer uma relação de causalidade em diversos casos”.
Da Autoridade Nacional de Proteção de Dados ( ANPD ), Lucas Borges de Carvalho, chama atenção para o fato de que crianças e adolescentes têm direitos legais amplos em relação à proteção de seus dados, inclusive os digitais. Ele disse que uma das prioridades da ANPD em 2024 está sendo a proteção infantil no ambiente digital, com estudos e consultas públicas e formalização de orientações para tratamento dos dados desse público.
As audiências dos dias 14 e 15 de maio foram conduzidas, respectivamente, pelos senadores Flávio Arns (PSB-PR) e Izalci Lucas (PL-DF), integrantes da CCDD, que é presidida pelo senador Eduardo Gomes (PL-TO). Alessandro Vieira, autor do PL PL 2.628, é igualmente mebro da comissão de Comunicaçãoe Direito digital
Também participaram das reuniões Daniel de Andrade Araújo, da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel); Francisco Brito Cruz, do InternetLab ; Rodrigo Paiva, da Associação Brasileira de Licenciamento de Marcas e Personagens; Carla Rodrigues, coordenadora do Data Privacy Brasil ; Thiago Tavares, presidente da Safernet Brasil ; e Ana Carolina Fortes Iapichini Pescarmona, da Associação Brasileira de Anunciantes. e contribuíram com os debates Alana Rizzo, do YouTube Brasil; Fernando Gallo, do TikTok Brasil; Ana Bárbara Gomes, do Instituto de Referência em Internet e Sociedade ( Iris ); Tais Niffinegger, da Meta (Facebook); Ana Bialer, da Câmara Brasileira da Economia Digital ( camara-e.net ); Juliano Maranhão, do Legal Grounds Institute ; Flávia Annenberg, do Google Brasil; o psicólogo Rodrigo Nejm; e Letícia Maria Costa da Nóbrega Cesarino, do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania.
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