As redes de educação não cumprem satisfatoriamente a obrigação, estabelecida pela Lei 10.639, de 2003 , de ensinar sobre a história e a cultura afro-brasileiras. É a constatação dos participantes de audiência pública interativa da Comissão de Direitos Humanos (CDH) realizada nesta segunda-feira (3).
A reunião foi requerida pelo senador Paulo Paim (PT-RS) para avaliar os 20 anos de vigência da lei. A norma determina que todas escolas de ensino fundamental e médio incluam o estudo da história e cultura negra, resgatando a contribuição deste povo nas áreas social, econômica e política.
Paim mencionou pesquisa divulgada em abril de 2023 pelo Instituto Alana e Geledés Instituto da Mulher Negra , segundo a qual a lei tem sido descumprida. O estudo coletou dados de 21% dos municípios. Para Paim, a lei é fundamental para lutar contra a discriminação racial.
— Infelizmente, sete em cada dez secretarias municipais de educação não realizaram ou realizaram poucas ações para implementação do ensino da história afro-brasileira. Precisamos contar todas as histórias do Brasil, pois não existe uma história única. É uma das mais importantes ações para a mudança cultural e social do país. E para que isso aconteça precisamos contar com o apoio de todos. A implementação da lei é combater o racismo na prática — disse Paim.
Para a senadora Zenaide Maia (PSD-RN), a divulgação de informações sobre a lei a todos os envolvidos na educação é o caminho para que seja efetivamente executada. A senadora propôs um documento que seja distribuído na sociedade.
— Queria sugerir uma cartilha de letramento racial, de fácil acesso, dando visibilidade, [juntando] professores, alunos, pais… No mínimo, vamos chamar atenção da mídia. Informação é poder. Não adianta ter leis sem dar conhecimento para toda a sociedade. Não podemos perder a esperança — disse Zenaide.
A visão da educação como instrumento de transformação social é compartilhada pela coordenadora-geral da Memória e Verdade sobre a Escravidão e o Tráfico Transatlântico do Ministério de Direitos Humanos (MDH), Fernanda do Nascimento Thomaz. Para ela, a necessidade de uma lei para incluir conteúdos sobre negros na grade curricular acusa que o Brasil possui um sistema racista. Ela ressaltou o caráter escravista da formação do país, lembrando que o período posterior aos 300 anos de escravidão dos negros veio acompanhado de políticas que institucionalizaram o racismo. Fernanda Thomaz mencionou as políticas de branqueamento da população na virada dos séculos 19 e 20, influenciadas pela ideologia eugenista, que, eivada de racismo, pontificava por um pseudomelhoramento genético. Também ressaltou o histórico de resistência da população negra, que resultou na própriaLei 10.639, de 2003.
— De 2003 para cá, durante muito tempo minha perspectiva era 'nada mudou'. A pesquisa [mencionada por Paim] mostrou o quanto foi pouco implementado o ensino da história afro-brasileira. Mas por outro lado houve momentos significativos, como pesquisas sobre histórias negras, boa parte das universidades públicas têm pelo menos uma cadeira da história da África… E daqui pra frente? É urgente pensar que a implementação da Lei 10.639 é política de Estado. Um dos braços hoje do MDH é [ver] a educação como um espaço político e de conflito. Iremos batalhar pela educação progressistas e inclusiva. Sem isso, não há democracia e mundo mais humano — disse Fernanda Thomaz.
Segundo as coordenadoras-gerais da pesquisa citada por Paim, Tânia Portella e Beatriz Soares Benedito, é preciso destinar valores no orçamento público específicos para a implementação da lei e definir mecanismos de monitoramento estatal. Tânia Portella criticou as políticas públicas municipais por se contentarem com ações de conscientização e utilizarem a falta de apoio dos entes federados como desculpa para não realizar outras ações.
— [As secretarias] atuam a partir da abordagem de sensibilização, que geralmente envolve discutir a diversidade cultural e literatura. Não que não sejam importantes, mas são temas de entrada da discussão e a gente já está em um momento que precisa adensar a construção de conhecimentos. Na resolução dos casos de racismo, que acontecem cotidianamente, [as secretarias] não têm tato para tratar [...]. Independente de receber apoio de outros entes federados, é responsabilidade dessas secretarias a implementação dessa política — disse Tânia Portella, representante do Geledés Instituto da Mulher Negra.
Beatriz Benedito explicou que a pesquisa tem objetivo de atualizar dados para orientar a elaboração de políticas públicas. Ela afirmou que 74% das secretarias municipais não têm quem cuide estrategicamente da inserção de estudos sobre a história negra.
— É um número que inviabiliza qualquer tipo de ação nessa agenda — disse Beatriz Benedito, do Instituto Alana.
A pesquisa consultou, mediante questionários,secretarias de educação de 1.187 municípios. Os institutos observaram critérios de disponibilidade orçamentária, presença de equipe responsável pela implementação da lei, regulamentação com normas municipais e coordenação de ações com redes escolares. Apesar de a lei determinar a presença obrigatória de conteúdos sobre negros apenas no ensino fundamental e médio, as pesquisadoras incluíram creches e pré-escolas nas análises.
Também participaram do debate a deputada federal Carol Dartora (PT-PR), o diretor-geral da Escola Nacional da Defensoria Pública da União (DPU), Cesar de Oliveira Gomes, e a representante do Ministério da Igualdade Racial, Natália Neris, entre outros convidados.
Paim lembrou que o Senado aprovou, em novembro de 2021, o selo Zumbi dos Palmares, a ser conferido aos municípios que adotarem políticas de ação afirmativa para combater o racismo. Proveniente do Projeto de Resolução do Senado (PRS) 55/2020 , do próprio Paim, o selo tem o objetivo de estimular as cidades a implementar ações inclusivas.
Os municípios serão premiados anualmente em sessão do Senado especialmente convocada para esse fim, no dia 20 novembro ou em data próxima, em razão do Dia da Consciência Negra. Paim se comprometeu a articular pela implementação do selo.
A Lei 10.639, de 2003, é originada do Projeto de Lei da Câmara (PLC) 17/2002 . A norma alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional ( Lei 9.394, de 2006 ) para seja ministrado em todo o currículo escolar, em especial nas matérias de artes e de história, conteúdos sobre o passado dos negros no Brasil.
As escolas devem tratar da história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional. A lei também instituiu no calendário escolar o Dia Nacional da Consciência Negra no dia 20 de novembro.