Novos testes, mostrados na revista The Lancet, apresentam um avanço nos casos de terapia gênica para surdez. O estudo foi repercutido pela revista Science e constatou uma recuperação em parte da audição de crianças nascidas com mutações que as deixaram surdas.
Gene OTOF
O tratamento citado nos artigos envolve somente os casos de surdez relacionados a uma mutação no gene da otoferlina, também conhecida como OTOF. Nesse sentido, o professor Victor Evangelista de Faria Ferraz, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da Universidade de São Paulo ( USP ), explica que a proteína produzida pelo gene OTOF tem um papel importante na condução do sinal elétrico para o nervo e fazer o sinal chegar ao cérebro.
“A otoferlina está ligada à condução nervosa da cóclea, órgão que transforma o som mecânico em impulsos nervosos para o cérebro. Especificamente, está presente exatamente nas células ciliadas, células que fazem a transformação do sinal mecânico em elétrico”, complementa Ferraz.
Sobre o caso de surdez ligado ao gene, o professor Miguel Angelo Hyppolito, da FMRP-USP, comenta: “Geralmente compromete crianças logo ao nascimento, mas pode se manifestar tardiamente. Em algumas condições existe a perda auditiva sensorioneural severa e aí a pessoa não ouve nada e é tratada atualmente com o implante coclear”.
A terapia gênica
Com resultados publicados nas revistas The Lancet e Science, um inovador tratamento através de terapia gênica para o caso de surdez relacionado ao OTOF foi testado. “Os estudos estão ainda numa fase muito precoce. Mas é claro que o grupo de pesquisa divulga esse ‘sucesso inicial’ por questões de propaganda, pela oportunidade de serem os primeiros a fazerem um tratamento genético, sem desmerecer toda a importância desse primeiro resultado para a ciência”, explica Hyppolito.
O docente ainda explica que, por envolver apenas um único gene e não existir lesão instalada nas células ciliadas cocleares — no início do quadro —, os estudos se iniciaram através desse tipo específico de surdez. Ele ainda comenta que a maioria das perdas auditivas envolve lesões de células ciliadas externas ou internas do órgão de Corti que precisariam ser regeneradas, algo muito difícil por envolver a manipulação de vários genes.
Ferraz explica como funcionou o tratamento: “Ele foi possível utilizando um tipo de vírus modificado, um vírus adeno-associado, que não causa doença, contendo uma cópia funcional do gene, injetado diretamente na cóclea. A otoferlina passa a se expressar nas células necessárias, com melhora da audição em cinco dos seis pacientes que realizaram o tratamento descrito nesse artigo”.
Apesar disso, Ferraz também aponta que houve uma dificuldade em colocar o OTOF em um único vírus adeno-associado, devido ao seu tamanho. Para resolver isso, uma das estratégias utilizadas foi a divisão do gene em dois, utilizando dois vírus para o processo, passo que, segundo o especialista, foi fundamental para o sucesso da terapia.
Carlos Frederico Martins Menck, professor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, explica que o tratamento, por enquanto, ainda é temporário. “A expectativa, para esse adeno-associado, é que essa expressão dure alguns anos, eu diria dois a três anos. Então, provavelmente vai ter que haver uma reaplicação no futuro. Pode ser temporal, mas isso nós vamos aprender, nós vamos ver isso com o futuro e com o uso disso”, declara.
E o futuro?
Menck também cita a possibilidade do tratamento chegar ao Sistema Único de Saúde brasileiro no futuro: “Eventualmente, pode ser aprovado na Anvisa brasileira, depende talvez de mais estudos, e daí ele pode ser comercializado. Alguns processos de terapia gênica já estão sendo comercializados no Brasil, mas o custo é extremamente elevado”.
Na expectativa do professor, com uma ampliação do número de processos que usam principalmente esse tipo de vírus adeno-associado — como se teve um avanço enorme durante a pandemia para o uso de vírus carregando genes —, o preço e o custo do tratamento podem ser reduzidos.
Miguel Hyppolito, contudo, mostra um diferente ponto de vista: “Acho que não vou ver isso acontecer. O SUS priva os pacientes de muitos tratamentos, pois, no caso das portarias da rede auditiva, elas estão desatualizadas desde 2011. Infelizmente, os princípios do SUS não são aplicados, só no papel e na propaganda política”. Ele ainda afirma que, caso ocorra, deverá ser em um futuro distante.
Regina Célia Mingroni Netto, professora do Instituto de Biociências (IB) da USP, explica que o tratamento, através de terapia gênica, ainda não é aplicado por nenhum hospital ou centro de pesquisa brasileiro e representa uma porcentagem pequena dos casos de surdez. Além disso, ela também conta que é importante a realização de testes genéticos em crianças e jovens com surdez, sendo capaz de identificar os possíveis candidatos às terapias gênicas — no caso da pesquisa atual, aqueles com alteração no gene OTOF.
“Seria muito interessante que os testes genéticos para identificação dos genes alterados na surdez se tornassem mais acessíveis. No Brasil, são muito poucos centros de referências em genética que têm capacidade de prover esses testes. Seria muito importante essa expansão por meio dos hospitais públicos da rede credenciada e financiada pelo SUS, para que a gente preparasse o terreno para a terapia gênica”, informa.
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