A decisão do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de colocar como tema da semana da Pátria osloganDemocracia, Soberania e União sinaliza para a volta da principal data comemorativa à temática republicana e para a harmonia, após a mudança no perfil do desfile nos últimos anos, quando a celebração do 7 de setembro foi usada politicamente pelo então presidente Jair Bolsonaro para ameaçar instituições democráticas. A opinião é de especialistas ouvidos pelaAgência Brasil.
Para o professor Heraldo Makrakis, pós-doutor em Estudos Estratégicos Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutor em Ciências Militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, o governo acertou ao escolher um tema que reforça o sentido de democracia.
“Todo ato cívico tem seu cunho político, no entanto, ele deve ser realizado de forma protocolar, como todo ato de governo. O que parece diferenciar a proposta atual das as anteriores, fazendo alusão ao governo Jair Bolsonaro, é que o tema dado de antemão indica ser mais republicano, porque tem um tema representando preâmbulo constitucional e não grandes discursos sobre pátria, família e Deus que são temáticas sem vínculo com um ponto protocolar da Constituição.”
O professor diz ainda que o ex-presidente usava o espaço institucional em seu benefício, alimentando a retórica de que as Forças Armadas estavam subordinadas a ele, não ao cargo que ocupava, e para atacar adversários.
“Isso é uma retórica para o seu público e foi feita, no meu entendimento, de uma forma desconcertante. Se de um lado ele afirmava que jogava dentro das quatro linhas da Constituição Federal, do outro utilizava o palanque e o momento cívico-político, que deveria ser protocolar, para destratar autoridades. Não me parece adequado e nada protocolar”, pontuou.
O pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, que conta com pesquisadores do Brasil, Argentina e Índia, e doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) Ananias Oliveira tem avaliação similar. Oliveira que pesquisa sobre militares, democracia e política, disse àAgência Brasilque a temática consolida a ideia de respeito e democracia.
“A temática escolhida para 7 de setembro é muito interessante porque dá ênfase à democracia, à soberania e à união, ou seja, o entendimento de paz e de respeito e também à soberania”, afirmou.
“A gente tem que entender que há uma concepção de democracia nossa, da sociedade civil, e a dos militares e isso tem que ser trabalhado. Esse distanciamento tem que ser feito. O que o Bolsonaro fazia era atentar contra a democracia em um dia que era para inspirar a Democracia”, completou Oliveira que apontou ainda que as ações do ex-presidente contavam com “anuência e apoio dos militares ou de militares de alta patente, das cúpulas hierárquicas”.
Oliveira considera ainda que, ao desdobrar o desfile em quatro eixos temáticos – Paz e Soberania, Ciência e Tecnologia, Saúde e Vacinação e Defesa da Amazônia –, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez uma importante contraposição ao governo anterior, mostrando o que é “viver na democracia”.
“Acho importante o Lula fazer isso em contraposição ao que foi o desastroso governo do Bolsonaro. E essa contraposição é essencial para mostrarmos como é viver na democracia, para mostrar como é viver sem estar em estado de guerra, porque, antes, a população era sempre atacada. O que Lula faz com isso é trazer uma ideia de paz, de harmonia, entre os entes, a sociedade”, afirmou.
O historiador e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Daniel Aarão Reis considera que o tema é importante, ainda mais considerando os atos antidemocráticos de 8 de janeiro, que contaram com a participação de militares.
“Certamente, vamos ter uma atmosfera diferente da que prevalecia durante o governo Bolsonaro. Mas ainda penso que, no que diz respeito aos militares, a democracia brasileira precisa avançar muito no sentido de fazer com que os militares e a sociedade passem a considerar os fardados como funcionários públicos fardados, nada menos, nada mais do que isso. A ideia dos militares como anjos tutelares da República enraizou-se muito e será um trabalho de fôlego reverter isso”, disse Reis àAgência Brasil.
Para o historiador, o Brasil ainda conviverá com a sombra da tutela ou do golpismo militar enquanto a formação dos integrantes das Forças Armadas não passar por uma profunda reformulação da doutrina, ainda baseada nos resquícios da guerra fria e na ideia do “inimigo interno”.
“Precisamos começar pela reformatação dos currículos militares, condicionados ainda, em grande medida, pela cultura da guerra fria e de suas atualizações: guerra híbrida, etc. A chave de tudo encontra-se na formação dos militares, a começar pelas Agulhas Negras e pelas demais escolas de formação de oficiais. Eles são ensinados a manter esta tradição de anjos tutelares. Enquanto isso não mudar, a república democrática não se consolida”, disse.
A reformulação da doutrina também é apontada por Makrakis e Oliveira como essencial para redesenhar o papel que as Forças Armadas devem cumprir no Estado.
“Há um entendimento orgânico para o comportamento dos militares e, nos meus ensaios, ele se deve muito às doutrinas militares – como a doutrina da guerra da quarta geração [em que o inimigo não é necessariamente outra nação, podendo ser um grupo terrorista ou organizações criminosas] – e ao gerencialismo, doutrinas que, para os militares, é a realidade revelada. Então a questão é: se está na doutrina, o militar não questiona. Se está na doutrina e alguém vai dar uma palestra de que os militares são um poder moderador, ele ‘firmou doutrina’, como se diz, e isso vai fazer parte do sistema de doutrina dos militares e eles jamais vão questionar esses pontos”, refletiu Makrakis.
Oliveira aponta que o pensamento militar é condicionado para que eles se vejam como tutores da democracia, uma construção que vem desde a proclamação da República.
“O problema é que eles entendem que tem que participar quase como um quarto poder ou como um poder de tutela no projeto nacional, no projeto de país”, disse Oliveira.
“Temos que mudar a compreensão de defesa, a ideia de defesa nacional para que o lugar dos militares seja bem específico: eles são técnicos, são operacionais. Eles têm que participar ativamente e intelectualmente da concepção de parte da estratégia de defesa nacional, mas a estratégia de defesa nacional, programa, projeto de nação, são elementos do governo civil, do estado civil. Eles são a parte técnica operacional da defesa”, afirmou.
Para o pesquisador essa mudança passa pela reformulação do currículo e das escolas de formação, como a Academia Militar das Agulhas Negras (Aman).
“Isso envolve reformular currículo da Aman, plano de estratégia de defesa com participação da sociedade civil e desmilitarizar o estado, especialmente o Ministério da Defesa. Ele é um órgão civil, mas boa parte dos cargos ainda são de militares na alta cúpula”, disse.
“A gente tem que recolocar ou colocar as Forças Armadas dentro do papel institucional que lhes cabe, mas que foi sendo precarizado nas relações entre o governo civil e os militares ao longo dos últimos anos. Quando [o ex-presidente] Michel Temer nomeia para a Defesa um general [Joaquim Silva e Luna] ele desvirtua, ataca a democracia, as instituições democráticas, porque o Ministério da Defesa é uma forma de controle civil das Forças Armadas”, concluiu Oliveira.
Uma das consequências dessa politização das Forças Armadas pode ser observada, segundo Oliveira, no comportamento dos militares em relação aos acampamentos em frente aos quartéis e nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro, que contaram com a participação ativa de militares.
“As Forças Armadas foram negligentes de maneira proposital com os acampamentos. Acredito que o Exército não esperava um evento daquele porte, acho que eles previam que poderia acontecer alguma coisa, mas não daquele porte e daquela maneira e ficou claro que eles acobertaram os golpistas. Eles acobertaram, participaram ativamente porque protegeram e isso fez com que a sociedade percebesse eles como participantes daquele 8 de janeiro, principalmente o Exército. As cúpulas hierárquicas tentam negar, mas o fato é que deixaram terroristas em frente aos quartéis e não fizeram nada para tirá-los de lá”, afirmou.
Para Makrakis é preciso que a sociedade compreenda que o controle civil sobre as Forças Armadas é um mecanismo adotado em democracias modernas.
“As carreiras que são típicas de estado [como os militares], por essas particularidades, possuem um estatuto próprio que tem que ter mecanismos para serrem fiscalizados. Nas nações democráticas em que existe o conceito de controle civil sobre as forças militares, isso não significa civil dando ordem para os militares, isso implica justamente mecanismos para verificar se há as politicas publicas que incluem o cumprimento desse estatuto estão sendo seguidas”, disse.